sexta-feira, março 29, 2024

Jacques Rivete - IV: OUT 1, um Filme TOTAL





"O filme engole tudo e finalmente se autodestrói" 

Jacques Rivette


"Treze homens imbuídos pelo mesmo sentimento, todos dotados de uma grande energia para serem fiéis à mesma ideia, muito prontos para cometerem traição, mesmo que seus interesses fossem opostos, muito profundamente políticos para dissimular as ligações sagradas que lhes unem, muito fortes para se colocarem acima de todas as leis, muito ousados para tudo empreender, e muito felizes para ter quase sempre sucesso em seus desígnios (...). Enfim, para que nada escape à sombria e misteriosa poesia desta história, estes treze homens continuam desconhecidos, ainda que todos tenham realizado as mais bizarras ideias que sugere à imaginação o poder atribuído aos Manfredo, aos Fausto, aos Melmoth; e todos hoje estão divididos, dispersados, ao menos."

Honoré de Balzac, na introdução à trilogia de romances Histoire des Treize (1833-39). A tradução é de Paulo Rónai. 


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Depois de CÉLINE ET JULIE VONT EN BATEAU, DUELLE (UNE QUARANTAINE), NOROÎT, MERRY-GO-ROUND e LE PONT DU NORD, creio que estou pronto para dizer uma ou duas coisas a propósito da Grand Œuvre, o filme-matriz, a magna epopeia, a Odisseia, a Comédie Humaine e a Recherche de Jacques Rivete (e em verdade a galáxia semiótica, o quase infinito labirinto de referências cruzadas y intersecções simbólicas do cineasta de facto abarca tudo isso y muito mais): 

OUT 1: NOLI ME TANGERE (1971). 

Muito embora convenientemente divididas em oito 'capítulos', são quase 13 horas de filme (existe uma versão alternativa de 'apenas' 4 horas chamada OUT1: SPECTRE, mas não falarei dela), resultando numa obra que sob múltiplos y profundos aspectos pertence a outro tempo, se calhar até mesmo a outra dimensão. Assistir hoje a um filme de Rivette - notadamente à sua obra máxima - significa, estou certo disto, ter a disposição e até mesmo a coragem de mergulhar profundamente numa realidade alternativa, de drasticamente se desconectar da própria dinâmica histérica, estéril y espasmódica de nosso tempo presente, tão avesso à perplexidade metafísica, à (anti)lógica do sonho e ao paradoxal destino dos magnetizadores do fogo dos deuses... c/ efeito, é percorrer as sendas de um universo paralelo, mesmo que somente por algumas horas. É, em suma, um ato... 'POLÍTICO', para usar um chavão em voga, mas que no contexto tem razão de ser. Nesse sentido, penso ser cabível uma advertência preliminar: os habituais detratores do cinema francês terão - com absoluta justiça - todos os motíveis possíveis e concebíveis para simplesmente execrar o filme. Pois em OUT 1 TODOS os vezos estilísticos, os tropos narrativos, os maneirismos, estereótipos y clichês que historicamente identificam a sétima arte nas terras gaulesas são levados às últimas y mais delirantemente extremas consequências. 

A quem se dirige, portanto, este catedralesco opvs rivettiano? Diria eu que substancialmente a cinco grupos de espectadores - que podem ou não se interseccionar:


- cultores de teorias da conspiração, sociedades secretas, seitas, ordens iniciáticas etc;  

- obecados por simetrias, paralelismos, correspondências, regularidades, padrões, coincidências; e, ao mesmo tempo, também por amor à simetria, a seu reflexo invertido: falhas, erros, anomalias, lacunas, panes;  

- amantes de enigmas, charadas, criptogramas, anagramas, lipogramas, palíndromos, alusões cifradas, paródias, paráfrases, colagens  etc. etc. etc. à guisa de jogos semióticos / metalinguísticos aplicados à literatura (e por extensão a qualquer outra arte), num arco que poderia ir de, digamos, Lewis Carrol a um autor contemporâneo como Thomas Moyniham, passando por Edwin Abbott, Macedonio Fernández, Borges, os autores do Grupo Oulipo, Milorad Pavic etc.; 

- apaixonados pelo teatro, sobretudo aqueles profissionalmente envolvidos com ele;

- aficcionados pelos universos literários de Balzac e/ou Proust.   

A crítica cinematográfica, quase sempre lamentável, costuma priorizar um sexto grupo: os inconsoláveis órfãos da contracultura, do naufrágio de 68. Mas é a meu ver d'uma associação preguiçosa, baseada em conexões meramente circunstanciais. 

Muito bem, este então seria o público-alvo, basicamente. Mas enfim, de que se trata o filme? Tentemos agora decifrar a esfinge. 


OUT 1 é antes de qualquer outra coisa uma  colossal, ciclópica mistificação; e aqui emprego tal epíteto da forma mais elogiosa que se possa imaginar, por incrível que pareça. Trata-se, portanto, d'uma grande impostura, uma meticulosamente concebida, minuciosamente lapidada y milimetricamente executada impostura. Pois que é toda conspiração senão uma farsa, um logro? E analogamente, toda sociedade secreta, seita, ordem iniciática, senão expedientes mais ou menos elaborados / argutos de engano y ilusão? E aqui não importam, acredito eu, as linhas de demarcação entre fantasia e realidade, sociedades secretas fictícias (no caso os Treize e os Dévorants dos romances de Balzac) e reais (os Compagnons du Devoir, algo como uma maçonaria 'nacional' criada em França no Medievo). E mais, significativa e substancialmente mais: que é a própria EXISTÊNCIA, ao fim e ao cabo, senão "a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing", como proverbialmente definiu o Bardo de Stratford-Upon-Avon? OUT 1 ilustra esta devastadora verdade de modo insofismável, categórico, definitivo: gestos e olhares furtivos; palavras sussurradas, plenas de mistério, medo, dúvida, perplexidade; movimentos febris, atos impensados, rompantes intempestivos, que podem levar até mesmo à morte; encontros, desencontros, reencontros; começos, recomeços, ciclos, desenlances... Para quê? Não se sabe; os personagens / atores também não sabem. E não hesito em afirmar: tampouco sabem os responsáveis pelo roteiro e pela direção, nomeadamente Rivette e sua colaboradora Suzanne Schiffman. E nem ninguém saberá. Jamais. Não há ordem redentora e 'tutto nel mondo è burla'. 

Mas esta é apenas a primeira de muitas, múltiplas camadas. OUT 1 também é um exaustivo, escrupoloso y assombrosamente metódico exercício de simetria, digno das melhores tradições francófonas do ostinato rigore valeryano. À exceção do episódio inicial, todos os demais obedecem essencialmente à mesma estrutura: temos na abertura um subtítulo que se refere respectivamente ao primeiro e último personagens que aparecem em cena naquele capítulo (De Lili à Thomas, De Thomas à Frédérique); um punhado de stills exibindo cenas do episódio anterior; uma sequência em P&B de um minuto recapitulando o desfecho do capítulo antecedente antes do novo episódio ter início. E que não se conclua precipitadamente que paralelismos y regularidades se restringem a esse plano por assim dizer mais 'epidérmico'. Pelo contrário: é curioso perceber como cada uma das partes de OUT 1 obedecem a uma dinâmica mais ou menos similar. Cenas y sequências de natureza semelhante tendem a se repetir especularmente - aliás é frequente o recurso a longos takes com emprego de imagens refletidas em espelhos - episódio após episódio, sempre com discretas, muito embora significativas variações ditadas pela evolução da narrativa, o que gera um contraditório y desconcertante efeito de estranhamento / reconhecimento. E da simetria emerge a assimetria: com muita sutileza e engenho, Rivette vai gradativamente acrescentando à matéria fílmica uma série de glitches visuais e sonoros - são diálogos reproduzidos em reverse, ficando assim incompreensíveis; fade-outs abruptos; shots repetidos aleatoriamente; imagens desfocadas deliberadamente etc. E qual seria o propósito? Demonstrar quão enganoso e ilusório é todo o arcabouço de simetria que nos foi tão cuidadosamente apresentado? Pode ser... 

Ora passemos ao que caracterizei como "a galáxia semiótica, o quase infinito labirinto de referências cruzadas y intersecções simbólicas". Aqui Rivette está em seu elemento, e pode dar livre curso tanto à sua vasta erudição quanto à sua sempre surpreendente capacidade de estabelecer as mais inauditas conexões, interconexões, associações y alusões. Em OUT 1 o cineasta lança mão precipuamente de duas fontes textuais: a trilogia de romances HISTOIRE DES TREIZE de Balzac (concentrando-se mormente no FERRAGUS, CHÉF DES DEVORANTS) e na obra-prima do nonsense que é o poema proto-surrealista THE HUNTING OF THE SNARK (1876), de Lewis Carroll. É a mão do mestre, sem sombra de dúvidas: é simplesmente brilhante a maneira como Rivette insere as citações na enredo, liga os pontos y conexões e trabalha todo um vertiginoso jogo de possibilidades em termos de desdobramentos conceituais e referências cruzadas. É a nebulosa de um KAOS rigidamente organizado que se desdobra continuamente, agregando mais e mais dimensões. Tem-se, por exemplo, se não me engano nos capítulos 5 e 6, um par de memoráveis sequências onde os personagens peregrinam pelas estações de metrô de Paris em busca d'um colega que desapareceu misteriosamente. O modo como o mise-en-scéne é feito remete inequivocamente à Teoria da Derive / Errância situacionista, com suas elucubrações sobre os efeitos psíquicos que os espaços urbanos eventualmente poderiam exercer sobre seus habitantes, uma psicogeografia física, econômica e política da memória afetiva dos moradores das grandes metrópoles.      

Prosseguindo: OUT 1 é outrossim um panegírico, um hino em louvor, uma eloquente e passional declaração de amor ao teatro, sobretudo à complexa, labiríntica, tortuosa trama de relações artísticas y afetivas entre atores, diretores e encenadores. Em quase todos os capítulos do filme temos extensas, por vezes penosamente longas sequências - assim imagino, pelo menos, para quem não for do meio, ou não tiver, tal como eu, interesse didático no tópico - dedicadas a exercícios de improvisação teatral entre os elencos das duas montagens presentes no enredo - SETE CONTRA TEBAS e PROMETEU ACORRENTADO, ambas tragédias de Ésquilo. Para quem é do 'ramo', todavia, tais momentos podem ser instrutivos em vários níveis: a) uma espécie de mostruário de diferentes escolas / técnicas de interpretação teatral do século XX - Artaud, Meyerhold, Kazuo Ohno, Peter Brook, Grotowsky, Living Theatre, Fluxus, todos pedem passagem; b)  um fascinante tour de force em termos do que poderíamos chamar de 'metalinguagem dramatúrgica', isto é, atores interpretando atores precisamente no momento em que estão exercitando os fundamentos da arte da interpretação teatral enquanto... atuam; c) a discussão do teatro como metáfora / microcosmo por excelência da própria sociedade, sobretudo da mecânica das relações interpessoais.  

Por fim, o tributo aos universos literários de Balzac e Proust. No que tange ao autor da COMÉDIE HUMAINE, penso que se calhar são desnecessários comentários adicionais. Mas há que sublinhar que OUT 1 também é a Recherche proustiana de Rivette, especiamente em dois aspectos: a relação quase que simbiótica, de íntima, profunda, dir-se-ia até mesmo mítica y mística identificação, entre os personagens e a paisagem geográfica e sentimental de Paris, ou seja, o amálgama eminentemente proustiano entre matéria, consciência e memória; e ainda algo que certa feita escrevi a propósito do já citado Macedonio Fernández, mas que se aplica exemplarmente a Proust: uma apologética, uma ética, um modus vivendi e uma defesa da dignidade última da arte em relação à vida.    

Filme-matriz; filme-conspiração; filme-mistificação; filme-simetria; filme-metalinguagem; filme-enigma; filme-exercício. Assim é a monumental obra-prima de Jacques Rivette. NOLI ME TANGERE, a expressão latina presente no subtítulo de OUT 1, poderia ser traduzida como 'não me toques'. São as últimas palavras que Jesus Cristo teria dito a Maria Madalena, quando ela O reconhece após a ressurreição. Ao que parece, a intenção do cineasta era mandar um recado a produtores e exibidores: não ousem retalhar / mutilar meu filme. Eu diria que há também uma mensagem subliminar endereçada aos temerários exegetas: não tentem interpretá-lo. Faz sentido: o esforço que aqui levei a efeito, malgrado meritório, é de certa maneira fútil y supérfluo perante um filme verdadeiramente caleidoscópico e multidimensional, quase infinito, sob tantos aspectos. Um filme que por si só, é preciso que se diga com todas as letras, já bastaria para colocar seu realizador nos mais rarefeitos planos do Olimpo cinematográfico.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros




O peculiar cinema de Jacques Rivette - III

Alphonse van Worden - 1750 AD




MERRY-GO-ROUND (Jacques Rivette / 1981, 160m) foi um fracasso tanto de crítica quanto de público. E muito embora eu tenha até gostado bastante do filme, posso perfeitamente entender o porquê: trata-se d'uma obra profundamente... bem, o melhor adjetivo que encontro é o termo em inglês 'infuriating'. 

Pois em verdade vos digo: raríssimas vezes assisti a um filme de tal modo labiríntico, 'esotérico', praticamente inextricável.  Projeto de retomada do cineasta após o de certo modo traumático encerramento da tetralogia 'Scènes de la Vie Parallèle' (da qual Rivette só completaria os dois primeiros capítulos - DUELLE e NORÔIT), MERRY-GO-ROUND se apresenta como uma espécie de filme policial noir ambientado neste universo paralelo.  Só para os senhores terem uma ideia do que estamos falando, o caráter notoriamente sibilino, dir-se-ia até mesmo hermético, das tramas de clássicos do gênero como THE LADY FROM SHANGAI (Orson Welles / 1947) ou KISS ME DEADLY (Robert Aldrich / 1955), parece em cotejo c/ a obra de Rivette tão singelo y linear quanto o roteiro de uma comédia de Adam Sandler - s/ qq demérito para estas obras-primas do cinema americano, saliente-se. Exemplo disso, vale sublinhar, é a solução adotada por Rivette para a infeliz circunstância de Maria Schneider, talvez a personagem central do filme, ter abandonado as filmagens: empregar a atriz Hermine Karagheuz para substituí-la, s/ todavia fornecer ao espectador qualquer pista ou indício disto, tanto assim que nos créditos ela é simplesmente identificada como 'l'autre'. 

Com efeito, se você compreende a arte cinematográfica como um veículo criado para contar histórias c/ início, meio e fim, um filme como este pode se transformar numa experiência simplesmente excruciante, verdadeiramente insuportável.  Não obstante, para aqueles que concebem o cinema como um dispositivo catalisador de atmosferas, lanterna mágica capaz de conjurar paisagens oníricas, sondar as sendas do inconsciente y peregrinar pelos páramos da irrealidade, do mundo imaginário, este desconcertante filme s/ dúvida pode ser uma jornada das mais estimulantes.   

A mise-en-scéne e a estrutura narrativa de MERRY-GO-ROUND são essencialmente fragmentárias y erráticas, no limite da arbitrariedade aleatória; nesse sentido, os primeiros 25, 30 minutos do filme, relativamente lineares e bem concatenados, funcionam talvez como uma armadilha para espectadores incautos / ingênuos. Um duo formado por um contrabaixista e um clarinetista pontua de quando em quando a ação c/ interlúdios de free improvisation, e estranhamente (ou se calhar emblematicamente) este porventura seja o ponto focal mais constante, o eixo dramático de sustentação mais sólido que Rivette concede ao espectador, o que a meu ver resulta fascinante e particularmente hipnótico, a música como fio condutor da dramaturgia. 

No desfecho de MERRY-GO-ROUND as irmãs protagonistas saem de cena, enquanto o amante / namorado e a elusiva 'outra' trocam sorrisos misteriosos num promontório sombrio, após um exasperante jogo de fuga e perseguição que perdura ao longo de todo o filme.  Qual a conclusão, a última mensagem, a solução definitiva final para este caleidoscópio de enigmas? Nunca saberemos, e acredito que nem mesmo Jacques Rivette alguma vez soube. A impressão que se tem é a de um imenso quebra-cabeças, por certo sugestivo e belo, mas onde estão faltando numerosas peças. É algo que indubitavelmente tem o condão de irritar a esmagadora maioria das pessoas, mas que para mim sempre foi y será fonte de inesgotável fascínio, até mesmo obsessão.



sexta-feira, fevereiro 09, 2024

Vargtimmen (1968) / Ingmar Bergman

 Alphonse van Worden - 1750 AD



A propósito do título, antes de mais nada.


VARGTIMMEN.

A 'Hora do Lobo'.

Uma arcana expressão nórdica para o horário que a maior parte dos grimoires medievais considera mais propício à celebração de pactos e invocação do... Diabo. Três horas da manhã, para ser mais exato.

E é precisamente o momento do dia em que o protagonista Johan Borg (magnificamente interpretado por Max von Sydow) se vê acossado / assaltado pelos espectros (imaginários?) de seu passado, ora convertidos numa legião de vampíricos avantesmas emergindo dos báratros abismais do inconsciente.

VARGTIMMEN (1968) é de certo modo um ponto fora da curva na trajetória de seu criador Ingmar Bergman. Trata-se essencialmente de um filme de horror. Um soturno y sombrio pesadelo gótico, não obstante carregado de humor negro y sarcasmo cruel - o que aliás corresponde ao universo estético que o cinesta sueco exalta neste filme: o fantasmagórico mundo do romantismo e do expressionismo alemães. C/ o acréscimo, vale dizer, de generosas doses de fantasia surrealista; aliás, se me permitem uma analogia extravagante, eu diria que o filme poderia ser descrito como a versão que um improvável Buñuel escandinavo eventualmente faria para o magnífico Vampyr (1932) de C.T. Dreyer.

Pois VARGTIMMEN é uma grande declaração de amor de Bergman ao que de mais augusto a arte germânica produziu, que ele aqui evoca através da delirante fábula gnóstica da Zauberflöte de Mozart; da magia onírica dos contos de Hoffmann em sua faceta mais noturna, inclusive recorrendo diretamente a dois célebres personagens do ficcionista prussiano - o arquivista Lindhorst e o maestro Kreisler; da pulsão de morte do expressionismo, com suas falanges de sombras espectrais, macabros duplos e marionetes em soirées alucinatórias (um aceno talvez ao mítico Schatten - Eine nächtliche Halluzination / 1920 , de Arthur Robison), seus sinistros espelhos e labirintos, admiravelmente reproduzidos pela fotografia de Sven Nyqvist.

Em VARGTIMMEN Bergman propõe ao espectador um mundo assombrado pelas 'emanações glaciais do além' de que falava Béla Balázs. É o incerto, instável y inefável universo do homem que já não vê, mas tem VISÕES. É, c/ efeito, o inquietante domínio da 'misteriosa agitação do inorgânico' dos românticos teutônicos, onde seres vivos e objetos estão em estado de animação suspensa, um mundo paralelo onde o indivíduo não tem mais acesso aos dados objetivos da Realidade, podendo tão somente projetar visões subjetivas e interiorizantes a partir de suas quimeras.

Wilhelm Worringer falava sobre a presença d'um denso véu entre o homem nórdico e a Natureza. Eu diria que há um fosso, e não somente entre o homem nórdico e Natureza, mas entre toda a Humanidade e a própria Realidade como um todo. E este fosso está aumentando, inexoravelmente, dia após dia, ano após ano, geração após geração. E talvez já fosse intransponível à época do filme. VARGTIMMEN (que se calhar se converteu em meu Bergman predileto c/ o passar do tempo) é uma terrificante visão do fosso, a partir do fosso e sobre o fosso. O artista, antena da raça que é, proclama o veridito: não há escapatória. Que Deus se apiede de nós.

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PS

Aos amigos y confrades que pretendem reivindicar qualidades inadvertidas para o que se poderia chamar de 'cinema de entretenimento', sobretudo em cotejo c/ o que por outro lado poderíamos designar como 'cinema de arte', eu replicaria o seguinte:

Tais qualidades não são apenas inadveridas - o problema é que quase sempre elas simplesmente INEXISTEM mesmo.

De resto, o legado de mestres como Bergman, Welles, Dreyer, Rivette, Eisenstein ou Murnau não pode ser subestimado. Certamente pode ser criticado, reavalidado, redimensionado, relativizado, mas nunca subestimado, o que inevitavelmente acontece quando elevamos criadores e obras menores ao mesmo plano de excelência. E o cinema não merece isso, assim como a literatura ou a música.



terça-feira, agosto 22, 2023

A propósito de PARIS, TEXAS (1984 / Win Wenders)



- O texto a seguir assumirá o formato d’um conjunto de notas esparsas, já que há certas obras que, creio eu, jamais conseguirei resenhar de forma sistemática, convencional.


- Mamãe costumava descrever PARIS, TEXAS (Win Wenders / 1984) do seguinte modo: ‘fdp débil mental ferra c/ a vida de todo mundo; depois some do mapa; então do nada reaparece; faz a maior cagada do mundo novamente; e some mais uma vez’. - Uma sinopse jocosa, um review for dummies, digamos assim. Pensado, não obstante, por alguém que certamente estava longe de ser uma pessoa tola ou ignorante; antes pelo contrário, aliás: era uma cinéfila cultivada, de gostos refinados, apreciadora de rematados artífices da sétima arte como R. Bresson e C.T. Dreyer. Ao que acrescento: a despeito do que suas palavras à partida possam transparecer, ela gostou do filme. Muito até. Bem mais do que desejaria de ter gostado, diga-se de passagem. Pois em verdade PARIS, TEXAS pertence àquela seleta plêiade de obras de arte capazes de arrojar o espectador / ouvinte / leitor etc. no olho do furacão, num avassalador tsunami de emoções, sensações, y recordações. 


- Também eu fui fortemente atingido, golpeado em cheio em cheio no plexo solar da alma por esta obra devastadora, não somente o ponto culminante na trajetória de seu diretor mas também se calhar o filme mais emblemático em toda a década de 80, e até mesmo uma das grandes obras-primas da história do Cinema. Lembro-me como se fosse hoje: numa época em que abençoadamente não se era enxotado da sala de projeção após o término da sessão, permaneci estático / extático / mesmerizado em minha poltrona durante nada menos que QUATRO sessões consecutivas, e isso em se tratando d'um filme c/ quase duas horas e meia de projeção. Produto d'um casamento essencialmente disfuncional, filho d'um pai excêntrico / esquisitão (muito embora sob outros aspectos y circunstâncias), não é difícil imaginar porque PARIS, TEXAS me comoveu tão profundamente (e agora os srs. naturalmente compreendem porque outrossim sensibilizou minha mãe - que inclusive sabiamente não quis assisti-lo à época). De maneira que muito embora seja desde sempre um de meus filmes favoritos, é obra a que retornei tão somente duas vezes desde então: uma vez lá por meados dos anos 90 e agora neste fim de semana último. Há que ter cautela c/ estas altíssimas voltagens de 'vastas emoções e pensamentos imperfeitos' (Rubem Fonseca)... 


- Recorrendo cá a um surrado clichê da exegese crítica, PARIS, TEXAS é uma obra que opera em vários níveis, se desdobra em várias camadas. Dialogando morfológica, sintática y semanticamente c/ a avgvsta tradição da Hollywood Renaissance (filmes como THE SWIMMER, MIDNIGHT COWBOY, FIVE EASY PIECES, A WOMAN UNDER THE INFLUENCE etc.), Wenders (re)visita / ressignifica gêneros consagrados do panteão cinematográfico americano, reconfigurando-os sob uma perspectiva espiritual y estética que eventualmente só um estrangeiro poderia ser capaz de fazer. Pois essa é uma das claves fundamentais de PARIS, TEXAS: tal como tantas vezes sói acontecer na história de Hollywood, temos um forasteiro (que já foi Fritz Lang, Jean Renoir ou Billy Wilder) criando um complexo y imersivo painel da alma profunda da America. Assim sendo, o filme é, por exemplo, tanto um road movie (magnificamente registrado pela fotografia de Robby Müller, "intensa, radiante, ampla, límpida, altaneira, generosa, espraiando-se por desertos majestosos, desfiladeiros profundos e crepúsculos incandescentes", ecoando aqui o que assinalei a propósito de outro clássico da vertente - EASY RIDER) quanto western existencialista nas inclementes pradarias da pós-modernidade ( não me deixa mentir o inolvidável desfecho, com Travis Henderson partindo solitário em direção às terras sombrias do esquecimento de si mesmo, após ter levado a cabo sua derradeira missão), bem como um drama psicológico de finíssima carpintaria dramatúrgica (Harry Dean Stanton e Nastassja Kinski sobretudo, mas também Dean Stockwell e o próprio menino Hunter Carson, todos eles nos brindam c/ interpretações definitivas, mergulhos abissais nos báratros insondáveis da existência humana, twilight zone de obsessões, sonhos, temores e desejos). 


- Meditação sobre a traiçoeira dialética danação / redenção; sutil e sensível 'estudo de caso' sobre as relações familiares, radiografando o irresgatável naufrágio de um casamento, bem como as tão delicadas e movediças linhas de demarcação entre os laços viscerais que ligam um filho a seus pais biológicos, por mais problemáticos que eles possam ser, e por outro lado a ligação sempre d'algum modo 'subsidiária' que se estabelece c/ os pais de criação, por melhores que eles sejam; retrato a um só tempo poético e cruel da alienação, solidão y sentimento de crescente  dissociação que caracterizam a vida na metrópole contemporânea (a esse respeito merece especial destaque a fortíssima sequência do 'pregador maldito' anunciando o fim do mundo), Win Wenders nos oferece, pois, uma ampla, multifária gama de itinerários e possibilidades. 


- Com suas paisagens monumentais; suas infindáveis autoestradas atravessando o deserto e a alma; seus labirintos de viadutos, avenidas, malls y outdoors refulgindo sob a espectral fantasmagoria das luzes de neon, um filme como PARIS, TEXAS exibe de forma particularmente dramática e efetiva um impressionante paradoxo: quão perversamente sedutora pode ser a mitologia larger than life de uma sociedade cada vez mais caótica ("Moloch whose skyscrapers stand in the long streets like endless Jehovahs! Moloch whose factories dream and croak in the fog! Moloch whose smoke-stacks and antennae crown the cities!" - Allen Ginsberg) e desesperada ("America why are your libraries full of tears?" - idem), mas ainda assim pulsando vertiginosamente c/ a esplêndida e torrencial energia de mil supernovas ("Strong, ample, fair, enduring, capable, rich (...) Chair’d in the adamant of Time" - Walt Whitman). 


- Por fim, seria um sacrilégio falar sobre PARIS, TEXAS sem mencionar sua absolutamente antológica trilha sonora. A cargo do guitarrista Ry Cooder, trata-se d'uma navalha na carne aural, um verdadeiro réquiem em forma de delta blues, country e tex-mex music.

E é isso. 



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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros


segunda-feira, maio 29, 2023

Brevíssima nota sobre a grandeza das nações


Alphonse van Worden - 1750 AD



Li o seguinte comentário algures na bravia selva internética: 

"Roma não foi amada por ser grande, foi grande por ter sido amada"

Francamente, isto é um disparate, não faz o menor sentido. Trata-se d'uma chorumela sentimental, uma mera patacoada romântica.

Roma foi grande por ter sido uma sociedade organizada, bem governada, disciplinada, erigida sob a égide das grandes virtudes cívicas  - AVCTORITAS, GRAVITAS, IVSTITIA, DIGNITAS, PIETAS, SEVERITAS, VERITAS, FIRMITAS, INDVSTRIA, FRVGALITAS etc. -, predicadas por sábios e probos varões como os juristas Papianus e Ulpianus, o imperador Marcus Aurelius etc. Tais foram os alicerces da magnificência, da grandeza de Roma. E é tão somente a partir do pertinaz cultivo de tais virtudes que nasce o verdadeiro patriotismo, a energia vital que constrói impérios e conquista continentes, não essa patuscada de pacóvios, esse nacionalismo de pacotilha, de arquibancada de estádio de futebol, bloco de Carnaval ou comício / manifestação de demagogo mequetrefe.  

Enquanto não nos excedermos no exercício das grandes virtudes, jamais construiremos uma pátria digna de ser verdadeiramente amada. Urge começarmos por nós mesmos, e o princípio está no reconhecimento franco, sincero, até mesmo brutal, de nossos vícios e fraquezas. De nada adiantará dourar a pílula e fazer o elogio fátuo de quimeras e devaneios.

domingo, maio 28, 2023

A propósito de Desiderivs Erasmvs Roterodamvs, um tardio y merecido tributo


 

Gostaria hoje de corrigir uma flagrante, pertinaz injustiça. Trata-se de render preito y homenagem a um autor que nunca mencionei em qualquer texto, mas que sob certos aspectos exerceu influência determinante em minha trajetória intelectual: Desiderivs Erasmvs Roterodamvs (1466 - 1536), mais conhecido entre nós como Erasmo de Rotterdam, o famígero teólogo, reformador religioso e filósofo neerlandês; e analogamente celebrar o papel de duas mulheres incríveis nesta história: minha estimada profa. Marilena, de quem fui aluno de História Geral durante todo o ginásio e colegial; e minha falecida e amada mãe. 

Com efeito, foi por intermédio da referida mestra que tive pela primeira vez ciência do insigne humanista batavo, numa aula em que ela discorreu sobre os grandes pensadores do período renascentista na Europa, se bem me recordo na quinta série do curso ginasial. Sempre nutri uma forte atração por tudo aquilo que d’alguma forma representa um ‘ponto fora da curva’, e a peculiar y carismática figura de Erasmo, tingida por todos os matizes d’uma personalidade essencialmente flamboyant e indômita, bem como sua rocambolesca trajetória, eivada de peripécias y controvérsias, inevitavelmente suscitaram minha curiosidade; como se não bastasse, o título de sua obra capital era de todo irresistível para um menino como eu: STULTITIAE LAUS / MORIAE  ENCOMIUM, ou seja, o mítico ELOGIO DA LOUCURA. Fazer a apologia da ‘loucura’... ou em outras palavras, remar contra a maré, desafinar o coro dos contentes... evidentemente aquilo fora feito para mim! 

O fato é que já naquele mesmo final de tarde, ao encontrar minha progenitora na saída da escola, bombardeei a pobre senhora c/ mil e uma informações sobre as aventuras y desventuras de meu novo herói, e obviamente pedi a ela o livro de presente. E era justamente em contextos como este que tanto a generosidade quanto o fino descortino psicológico y intelectual de mamãe ficavam evidenciados: não opôs qualquer óbice à minha demanda, um reles frangote de apenas 11 anos, e dias depois lá estava eu c/ o livro nas mãos (uma modesta edição portuguesa daquelas coleções de bolso da Europa-America, não obstante esplendidamente bem traduzida, e que preservo c/ muito carinho até hoje). E o resto é história. 

Pois bem: relendo a obra esta semana, após um considerável hiato de quatro décadas, pude compreender c/ plena exatidão as razões pelas quais este desconcertante ensaio incendiou a imaginação daquele impressionável infante d’outrora; entre o homem feito e Erasmo, contudo, são muitos e profundos os pontos de divergência, e se calhar devo começar por eles. 

Para além de ter sido um dos mais notáveis inspiradores da Reforma (mormente d’uma perspectiva mais moderado no seio deste processo, tal como o anglicanismo, já que nosso autor não via c/ bons olhos os excessos farisaicos do luteranismo), há que frisar ter sido Erasmo um acerbo paladino do Estado laico e do secularismo d’uma maneira geral, e também sob vários aspectos um precursor do pensamento liberal; e tudo isto mesmo tendo permanecido nas fileiras da Igreja até o fim de seus dias, registre-se. De qualquer maneira, nada poderia estar mais longe das convicções de alguém como eu, assume francamente a defesa do absolutismo monárquico, do cesaropapismo e do direito divino dos reis... 

Mas ora retornemos aos idos da década de 80, para enfim tratarmos do que tanto impressionou aquele jovem mancebo. 

À partida ressalte-se o óbvio ululante: que magnífico escritor era Erasmo de Rotterdam! Manejando c/ pleno conhecimento de causa e assombrosa facilidade todo o arsenal retórico y literário da tradição clássica greco-romana (que muito embora fosse patrimônio comum de todos os eruditos de seu tempo, nem sempre era trabalhada c/ tanta sutileza e elegância), o excelso teólogo cria um texto ágil, exuberante, pejado de metáforas surpreendentes e audazes alegorias, c/ um resultado por certo jocoso, até mesmo hilariante, mas s/ jamais perder o caráter de  densa reflexão filosófica. Sendo das belas letras um entusiasta desde muito cedo, era impossível, portanto, não me ver hipnotizado por uma obra como essa.

Todavia, e aqui chegamos ao âmago da questão, foi o que Paul Valéry denominaria de ‘atitude central’, tanta na obra quanto no itinerário de vida de Erasmo, o que efetivamente me fascinou outrora, e certamente até hoje me arrebata: uma inteligência essencialmente crítica, analítica, a serviço d’um espírito altivo, combativo, sobranceiro, que não está disposto a fazer concessões torpes. Suponho que d’algum modo estes traços já correspondiam à minha própria índole, a uma disposição d’alma já atavicamente presente em mim; não obstante, outrossim estou convicto de que as boas leituras não são fundamentais somente para a formação intelectual do indivíduo, mas também para a formação do caráter. Se hoje sou ou pelo menos me empenho em ser um homem de espírito independente e altaneiro, disposto a desafinar o coro dos contentes e a não hipotecar sua dignidade em nome de compromissos espúrios, quero crer que a leitura do esplêndido libelo de Erasmo naquele já tão remoto ano de 1982 n’alguma medida deu lá seu providencial contributo.   



 

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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros

   

sábado, agosto 20, 2022

In Memoriam X


Alphonse van Worden - 1750 AD




Em primeiríssimo lugar, gostaria de prestar minha solidariedade ao insigne e querido prof. Alexandr Dugin, a quem tive a honra de conhecer pessoalmente, mesmo que brevemente. Não há como estimar a dor de um pai que perde um filho, ainda mais de forma tão repentina, absurda, bárbara e criminosa. 

De resto, tenho certeza de que esta monstruosa ignomínia não permanecerá impune, não somente em função da proteção que o Estado Russo oferece até mesmo ao mais humilde de seus cidadãos, mas sobretudo em virtude das profundas conexões que Dugin mantém com os serviços de inteligência e com o aparato de segurança estatal. Recordemos que o pai do ilustre filósofo era oficial de alta patente da inteligência militar soviética. 

Há outrossim que salientar que muito embora as suspeitas recaiam mormente sobre as organizações terroristas das ratazanas neonazistas ucranianas, a meu ver não se pode excluir a eventual participação no ocorrido de alguma agência de inteligência das potências atlantistas. Quero crer que todas as cartas estejam sobre a mesa num contexto como esse... 


R.I.P, Daria Dugina, que para ti se descortinem as iridescentes veredas da Arcana Coelestia











quinta-feira, julho 14, 2022

JOKER: ou o mal-estar no seio da própria barbárie

Alphonse van Worden - 1750 AD

 



Famígeros confrades: 

Visto andarmos tão 'cinematográficos' ultimamente, penso que seria oportuno tecer alguns comentários a propósito daquela que talvez seja a melhor produção recente em termos de mainstream hollywoodiano: JOKER (2019). 

 Antes de qualquer outra coisa, contudo, gostaria de fazer duas observações preliminares: 

a) as obras-primas representam para mim uma dimensão quase esotérica, sobrenatural, uma esfera rarefeita, etérea, no âmbito do cinema restrita a figuras como Welles, Dreyer, Vertov, Murnau, Rivette e mais uma 'meia dúzia de três'; não obstante, trata-se, sim, d'um excelente filme, surpreendente até, tendo em vista o cenário de 'terra devastada' do cinema de massa norte-americano nos dias de hoje; 

b) devo dizer que me identifico completamente com os sentimentos e atos do protagonista, a meu ver inteiramente justificáveis e se calhar até mesmo louváveis no âmbito das circunstâncias. Assim sendo, vamos parar com esse papinho bosta de 'compreender as motivações mas condenar as reações', 'anti-herói' e outras patacoadas do mesmo naipe: Arthur Fleck é um legítimo HERÓI, um dos únicos e últimos heróis possíveis no seio do mundo hodierno. É, sobretudo, um herói absolutamente íntegro, que não aceita compromissos sujos nem hipoteca sua consciência.  E digo mais: tal como o pessoal costuma  gracejar a propósito de figuras como Stalin, Mao Zedong, Pol Pot etc. etc., proclamo enfaticamente, em alto e bom som: 

MATOU FOI POUCO, CORINGA! 

Isto dito, conceitualmente falando creio ser crucial em primeiro lugar frisar o seguinte: a tese do filme como obra revolucionária, de denúncia contra o Sistema, é em última análise um tanto quanto ingênua e equivocada. Para invalidá-la bastaria lembrar do seguinte: o desfecho do filme é fundamentalmente derrotista, melancólico, sombrio e crepuscular. Se a última cena fosse a apoteose, o triunfo, o êxtase da insurreição dos clowns com o resgate de seu grande líder e mentor das mãos da autoridade policial, aí de fato até existiria algum teor subversivo, mas nem isso é oferecido ao espectador, a verdade é essa. E de resto...  Santo Cristo, bastaria dizer que JOKER é um lançamento da Warner Bros., ou seja, é um produto do próprio Sistema, gestado no próprio imo da Besta! 

Por outro lado, contudo, há que ter em mente duas coisinhas básicas: 

a) a existência do 'Sistema' como entidade monolítica, espécie de Leviathan multiforme e omnipresente, agindo de forma coerente e unificada sob um único imperativo, cada vez mais me parece ser uma fantasia teratológica. Decerto setores com interesses convergentes coordenam suas ações no intuito de obter certos resultados, mas é necessário atentar para o caráter essencialmente heteróclito do conjunto das forças em atuação no 'gran teatro del mundo' (Calderón de La Barca), bem como para o crescente grau de disfuncionalidade (e inclusive de aleatoriedade) inerente à própria complexidade dos processos em jogo.   

b) há um significativo elemento de autoironia (e até  mesmo de autossabotagem) que sempre existiu na indústria cultural; a esse respeito poderíamos citar vários exemplos, o que não viria ao caso no momento, todavia, tendo em vista os modestos propósitos desta nota. Trata-se d'uma dinâmica que deita raízes na própria esquizofrenia essencial da modernidade, que é uma consciência cindida, fraturada, fragmentária.  

Mas prossigamos. Houvesse que sintetizar toda a vastíssima galáxia de manifestações artísticas e literárias da modernidade numa única palavra, este vocábulo seria REVOLTA. Claro está que este sentimento/convicção se multiplica/desdobra em miríades de matizes distintos, que podem caminhar da ironia ao horror cósmico; do cinismo ao desespero; da vaga malaise ao ódio genocida; da inquietação difusa ao niilismo absoluto (caso do filme em tela, aliás). E tal revolta se transfigura como reflexo d’uma consciência cindida, d’um ethos fragmentário, caótico, no limite do delírio esquizofrênico. É precisamente este o Alpha e o Omega, o ponto nevrálgico da questão, seu centro de gravidade: o caráter essencialmente esquizofrênico da revolta moderna, da ‘grande recusa’, que a meu juízo está inexorável e inelutavelmente associado a ELES; sim, a ELES. E quem são ELES? Bom... Não é necessário ir muito longe: basta, por exemplo, recordar a origem dos próprios fundadores da nossa querida Warner, os irmãos Harry, Albert, Sam e Jack... 

Devo sublinhar que minha sem dúvida polêmica convicção desfruta até mesmo d’algum lastro científico: Emil Kraepelin, o pai da psiquiatria, aventa seriamente a hipótese de que o processo genético que desencadeia a esquizofrenia possa ter se originado a partir de mutações biológicas oriundas DELES. E como se isto não bastasse, penso que não seria de todo insensato afirmar, corroborado por autores da estirpe de um Julio Meinvielle ou de um Donoso Cortés (para citar dois pensadores de épocas, contextos e continentes distintos) que ELES em grande medida inocularam o vírus da revolta espiritual e existencial na cultura e sensibilidade modernas. 

Malgrado se calhar um pouco óbvia, neste momento uma observação de cunho pessoal se faz necessária. Vamos lá: os que me conhecem razoavelmente bem sabem que politicamente milito contra tudo que a modernidade representa; sabem outrossim que, apesar disso, sou fervoroso cultor de vários ‘modernistas’: de Baudelaire a Scelsi; de Poe a Ginsberg; de Nerval a Welles; de Rimbaud a Godard; de Villiers de L’Isle-Adam a Schönberg, contam-se às dezenas os avatares da modernidade que arrebatam a alma e incendeiam a mente deste que vos escreve;  Estou, pois, irremediavelmente contaminado pelo vírus da modernidade e não há quase nada que eu possa fazer a esse respeito. E esta constatação vale também para muitos entre vós: somos criaturas da modernidade, filhos d’uma época cujo espírito foi em larga escala por ELES formatado. Assim sendo, a revolta de Arthur Fleck, ainda que tragicamente alucinada e ao fim e ao cabo inútil, impotente e sob certos aspectos até mesmo fútil, não poderia deixar de me comover profundissimamente. 

JOKER reflete todas essas questões de forma especialmente visceral, pungente e sedutora. 



Para arrematar, duas breve considerações sobre os méritos mais propriamente 'cinematográficos' do filme (que no fundo constituem o que há de mais importante, a única garantia de que a obra perdurará na história da sétima arte, a despeito de qualquer polêmica ou discussão filosófica)

a) tendo em vista sobretudo o universo hollywoodiano, há muito tempo eu não assistia a um filme tão elegante, tanto em termos formais quanto no que tange à estrutura narrativa. JOKER é um filme sóbrio, adotando um tom quase sempre solene, hierático, até mesmo em suas (raras) explosões de violência.

b) muito já se discorreu sobre a presença do Martin Scorsese  dos anos 70 e 80, mais especificamente de Taxi Driver e The King of Comedy, no filme de Todd Phillips; com efeito, há uma pletora de citações, referências e alusões a essas obras. Não obstante, gostaria de lançar à baila aqui dois outros nomes: Stanley Kubrick e Jack Nicholson. O lívido e espectral oceano de glaciais tonalidades brancas que inundam algumas composições visuais (notadamente na cena entre Fleck e Thomas Wayne no banheiro do teatro, bem como no desfecho no manicômio judiciário) reverberam inequivocamente um tropo visual recorrente na obra do mestre inglês, mormente em sequências de cunho sobrenatural, ou onde se manifeste a intenção de deliberadamente obscurecer as linhas de demarcação entre realidade e imaginação. Por fim, penso que o arsenal de maneirismos, trejeitos e esgares, toda a panóplia de rictos faciais empregue por Joaquin Phoenix em sua inolvidável interpretação, tem como principal fonte de inspiração não o Travis Bickle de Robert de Niro, ou mesmo quaisquer dos Coringas anteriores, mas sim dois personagens de Jack Nicholson: Jack Torrance em The Shining (não por acaso tb de Kubrick) e Randle Patrick McMurphy em One Flew Over The Cuckoo's Nest (Milos Forman).  



Por fim II - A Missão, um adendo: 

À época do lançamento de JOKER li uma resenha crítica de Alexandr Dugin onde o filósofo russo descreve o protagonista do filme como uma figura 'repulsiva' e 'reaccionária'. Tal juízo, muito embora a meu ver esteja de todo equivocado, faz todo sentido no âmbito do quadro referencial de alguém como Dugin. 

Explico.

A verdade é que o ilustre autor de A Quarta Teoria Política não dispõe do 'instrumental' necessário para compreender em profundidade o ethos do Coringa. E isso ocorre por uma razão muito simples:  tais subsídios não são de ordem conceitual, teórica, mas sim de natureza psicológica, existencial. Um cidadão russo de quase 60 anos, que portanto cresceu e se formou sob o período soviético, não possui a experiência concreta da esquizofrenia crônica de nossas sociedades do espetáculo hipercapitalista. Destarte, não tem como compreender, 'sentir' visceralmente que, no 'coração das trevas' do ocidente contemporâneo, a figura do palhaço pode ser, sim, um agente revolucionário. Há no filme uma frase particularmente emblemática que sintetiza tudo isso: 

"I used to think that my life was a tragedy, but now I realize, it’s a comedy."

É disso que se trata: a vida na Sociedade do Espetáculo se transformou numa ciclópica piada, numa caleidoscópica palhaçada.  Se calhar tão somente o 'Grão-Jogral' pode interpretá-la corretamente, decifrar corretamente seus alucinados arcanos. E Dugin, que cresceu num contexto completamente diferente, e hoje vive numa sociedade que ainda mantém certo grau de sanidade, provavelmente não é capaz de entender isso.


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Enfim, putada, é isso.

segunda-feira, julho 11, 2022

Farsa surrealista y Anarquia: a propósito do Walerian Borowczyk

Alphonse van Worden - 1750 AD 






Ah os anos 80 e seus indefectíveis cult movies, circulando entre cenáculos esotéricos de cinéfilos exaltados em abomináveis fitas VHS piratas, a partir de videolocadoras igualmente suspeitas... 

Pois bem: presença cativa nesta plêiade era o clássico do cinema libertino-libertário CONTES IMMORAUX (1973), do polaco exilado em França Walerian Borowczyk.  É talvez o filme que melhor ilustra a definição cunhada para o diretor por um crítico da Cahiers du Cinema: “trata-se de um gênio que por acaso também era pornógrafo”.  C/ suas composições visuais sempre inventivas e amiúde requintadas, até mesmo suntuosas, a obra mais famosa do cineasta polonês é de fato arte fílmica da melhor qualidade a serviço da velha e boa causa da sacanagem, e impressionou imenso este vosso então ainda jovem irmão d'armas.  

O dado concreto é que desde então fiquei c/ vontade de conhecer melhor a trajetória deste peculiar realizador, mas seja lá porque cargas d'água tão somente este ano vim a fazer isto, ao inadvertidamente topar com um generoso acervo de obras de Borowczyk à disposição no salvífico y civilizatório Mubi. 

C/ efeito, a messe é farta y variada, incluindo desde seus fascinantes experimentos em stop motion (curtas que prenunciam a estética grand-guignolesca que o tcheco Jan Švankmajer imprimiria depois ao formato) aos sempre controversos longas, obras como LA BÊTE (1975), BLANCHE (1972) e GOTO L'îLE D'AMOUR (1969). 

E d'entre estes últimos o destaque vai inelutavelmente para o desconcertante GOTO, uma alegoria política em compasso de farsa surrealista. Conceitualmente falando, é como se o Roussell de Locus Solus se inspirasse no Das Schloss de Kafka para compor uma peça satírica de cunho anarquista, acrescentando aqui e ali à receita algumas boas pitadas de Buzzatti e Potocki. Em termos de linguagem cinematográfica, por seu turno, Borowczyk se calhar até surpreendentemente retroage algumas décadas e evoca o chamado ‘realismo poético’ do cinema francês pré-Nouvelle Vague / II Guerra Mundial, reivindicando o insigne legado de figuras como Marcel Carné, Jean Renoir, Georges Franju etc. Assim sendo, oferece ao espectador um estimulante contraponto entre o caráter insólito da narrativa e a sóbria, rigorosa elegância formal da filosofia estética; sábia e salutar contraposição, desafortunadamente ausente, vale dizer, em obras ulteriores do cineasta. De resto, destaquemos as excelentes atuações de Guy Saint-Jean no papel de Grozo, o ambicioso marginal que metódica e implacavelmente subverte a ordem constituída na ilha; o célebre Pierre Brasseur encarnando Goto III, o malfadado soberano; e sobretudo Fernand Bercher, esplêndido como um excêntrico e ‘nefelibático’ mestre-escola. 



O peculiar cinema de Jacques Rivette - II


Como se fora uma adaptação teatral d'um romance de piratas de Rafael Sabatini encenada pelo Living Theatre sob a batuta de Antonin Artaud, c/ trilha sonora de Giacinto Scelsi executada pela Third Ear Band; ou então uma versão particularmente experimental de clássicos hollywoodianos do cinema de aventura como Sea Hawk ou Captain Blood (por sinal criações saídas originalmente da pena de Sabatini), em compasso de happening surrealista. 

Com efeito, não é por acaso que Jacques Rivette concebeu este NOROÎT - UNE VENGEANCE (1976) como uma espécie de desdobramento / sequência de seu filme anterior (DUELLE, do mesmo ano), ambos formando a primeira metade d'uma tetralogia que infelizmente jamais seria completada: Scènes de la Vie Parallèle. De fato, trata-se em tudo y por tudo d'um universo PARALELO, onde tanto as convenções tradicionais da mise-en-scène cinematográfica y teatral quanto os cânones habituais da estética fílmica são completamente abolidos / subvertidos. O consenso crítico, vale dizer, costuma apontar Jean-Luc Godard como o mais vanguardista entre os cineastas da Nouvelle Vague, mas hoje estou cada vez mais convencido de que este galardão deveria ser atribuído a Rivette.  

O enredo é uma livre adaptação d'uma clássica tragedy of blood do teatro jacobita inglês (The Revenger's Tragedy / 1606), peça de autoria até hoje controversa (alguns especialistas atribuem a Thomas Middleton, outros a Cyril Tourneur), mas você só reconhecerá a fonte caso seja efetivamente um scholar na matéria, tenha certeza. Diria eu, contudo, que o filme de certa maneira evoca / reverbera outros idiomas dramáticos, sobretudo as escolas japonesas do Noh e do Kabuki, referência que fica particularmente evidenciada no magnífico número final, um hipnótico bailado / baile à fantasia, eivado de ressonâncias esotéricas e alusões mitopoéticas à tradição helênica. 

Isto dito, não me furto a apontar outra possível fonte de inspiração: as Four Plays For Dancers (1921) de W.B.Yeats, obra-prima do teatro de vanguarda criminosamente esquecida na atualidade. Igualmente tributária das tradições teatrais nipônicas, esse quatuor de peças do grande poeta irlandês se estrutura como uma série de  intensos tableaux vivants, onde a trama é contada muito mais através dos números musicais e de balé do que propriamente por meio dos diálogos, assim como ocorre em NOROÎT. Aliás, mais do que precisamente uma trama, o que temos em ambos os casos afigura-se muito mais como conjuração d'uma atmosfera, d'uma galáxia de evocações y cavilações oníricas. 

Agora, nem tudo são flores: há cenas y sequências de tal modo aleatórias y gratuitas que resulta praticamente impossível o espetador não se ver assaltado por uma recorrente impressão de... mistificação. Se bem que... pensando melhor, no fundo isso é até bom... explico: este vosso confrade chegou a um estágio como espectador y ouvinte (literatura é outro papo, obedece a outros parâmetros) em que a circunstância de 'gostar' ou não de um filme, uma peça de teatro, um disco já não é o mais importante: importa antes o assombro, a perplexidade, o espanto, o pasmo, até mesmo a consternação - caleidoscópio de sensações que NOROÎT indubitavelmente suscita a mancheias.

Por fim, como bonus track, registro que a obra é protagonizada por lady Geraldine Chaplin, uma de minhas três atrizes favoritas em todos os tempos ao lado de Renée-Jeanne Maria Falconetti e Emmanuelle Riva, o que por si já é suficiente para tornar qualquer filme pelo menos digno de atenção.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros 

O peculiar cinema de Jacques Rivette - I


 

Leni (Rainha da Noite): oh tu, Filha do Sol, que de tão longe atacas! Eu desafio-te!

Viva (Rainha do Sol): oh tu, Filha da Lua, destruidora de cidades! Eu desafio-te.

[em turnos]

Viva: na primeira lua cheia da primavera...

Leni: no crepúsculo...

Viva: entre a noite e o dia, no Jardim das Sombras...

Leni: sob a Árvore dos Ventos do Noroeste, aguardarei por ti.

Viva: também eu... aguardarei por ti.

__


Jacques Rivette sempre foi o mais idiossincrático cineasta da ala mais 'experimental', digamos assim, da nouvelle vague francesa (o que não é dizer pouco, já que estamos a falar de figuras tais como Godard, Resnais e Chris Marker, por exemplo).

E hoje gostaria de dizer algumas palavras a propósito d'uma de suas criações mais desconcertantes: DUELLE - UNE QUARANTAINE (1976).

O cineasta concebia inicialmente o filme como a primeiro capítulo de um ambicioso ciclo em quatro partes: Scenes de la Vie Parallelle. O título não poderia ser perfeito: DUELLE de fato mergulha o espectador numa dimensão paralela, um mundo onírico y fantasmático, um labirinto de símbolos y enigmas, que a um só tempo hipnotiza y inquieta.  

A trama, eivada de significados místicos, ressonâncias esotéricas  e crípticas alusões alquímicas y astrológicas, poderia ser resumida da seguinte maneira: numa Paris de todo despida de clichês turistoides y magnificamente bem fotografada, temos o sempiterno y mortal conflito entre duas entidades cósmicas que a cada ano encarnam em avatares humanos durante 40 dias no inverno: a Rainha da Noite e a Rainha do Sol. Ambas desejam encerrar essa espécie de samsara e permanecer para sempre na Terra; para tanto, precisam tomar posse d'um arcano artefato de poder há séculos perdido: uma joia chamada Fada Madrinha. E nesse duelo, como o próprio título do filme aponta, manipulam céus y terras, mulheres y homens, empregando os astuciosos expedientes de sedução y sugestão.  

Uma sinopse como essa à primeira vista parece pressupor toda sorte de efeitos visuais, trucagens etc. tal, não é mesmo? Pois nada poderia estar mais longe da verdade: DUELLE é um filme espartanamente despojado de quaisquer artifícios nesse sentido. C/ efeito, a maneira como Rivette constrói seu universo paralelo inteiramente através das sutilezas do mise-en-scène, da hermética geometria de gestos y olhares, da polifonia polissêmica de seus diálogos.

De resto, o desempenho dos atores é uniformemente magistral, mas eu não poderia deixar de sublinhar a sinistra y sibilina elegância de Juliet Berto, eterna fêmea-serpente das artes fílmicas gaulesas, como Reine de La Nuit.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros 

quinta-feira, julho 07, 2022

A propósito da potência evocativa da imagem fotográfica

Alphonse van Worden - 1750 AD 




Meus mui estimados irmãos d'armas, savdações! 


Para vossas senhorias entenderem a que ponto pode chegar a influência de uma simples fotografia, o quão profundamente ela pode plasmar aspectos fundamentais da consciência d'um indivíduo, se calhar até mesmo seu horizonte existencial... 

Pois bem: resulta sumamente difícil transmitir aos senhores  do que representou para mim, então um menino de 8 anos, a matéria de capa da Revista Manchete em 1979 sobre a Revolução Iraniana, mormente as fotos de página inteira exibindo o Ayatollah Khomeini em 1979, tendo apenas 8 anos de idade. Com seu a um só tempo hierático, imponente y ameaçador hábito negro, a copiosa y venerável barba branca, ele parecia mais um personagem saído das páginas do SENHOR DOS ANÉIS do que qualquer outra coisa, como se fora uma espécie de releitura de Saruman. E como se não bastasse o impacto visual, a estrondosa, estrepitosa, avassaladora manchete, praticamente uma declaração de guerra ao UNIVERSO, de todo irresistível para um garoto de imaginação feérica como a minha:


AIATOLÁ: UM FANÁTICO CONTRA O MUNDO


Trata-se praticamente d'uma variante do célebre lema de S. Atanásio de Alexandria, um dos mais insignes teólogos y doutores da Igreja: SE O MUNDO FOR CONTRA A VERDADE, ENTÃO ATANÁSIO SERÁ CONTRA O MUNDO! Ora pois: como alguém que tem a audácia, a bravura, a intrepidez, a desassombrada convicção, o "admirável coração tranquilo" de se levantar contra o próprio MUNDO, poderia ser 'ruim' sob qualquer ângulo ou hipótese?! Inconcebível!

Enfim, foi algo que nunca mais me esqueci, uma imagem que ficou impressa em minha mente, em meu subconsciente, e é c/ absoluta certeza a fonte originária de todo o meu interesse pelo país e pelo processo revolucionário iraniano.

quarta-feira, maio 25, 2022

Glauber Rocha no exílio II - Cabezas Cortadas (1970)



Veneráveis irmãos d'armas:

Fazendo uma retrospectiva do cinema de Glauber Rocha no exilio, hoje foi a vez daquela que se calhar é sua criação mais densamente alegórica y profundamente enigmática: CABEZAS CORTADAS, rodado em 1970 nas evocativas paisagens de Cadaqués na Catalunha; localidade que aliás tanto fascinou Buñuel e Dali, duas referências fulcrais para este longa, que é de longe a obra mais surrealista em toda a filmografia do cineasta. Vale dizer que o próprio Glauber definia CABEZAS CORTADAS  como uma “viagem borgeana pela obra de Shakespeare”, o que por si só já é indicativo de suas pretensões c/ o filme.  

Tal como afirmei em comentário anterior, é preciso antes de qualquer outra coisa sublinhar a sutil intertextualidade existente entre as diferentes fases do opus glauberiano, uma complexa teia semiótica de retroalimentações e reflexos invertidos. Assim sendo, se DER LEONE HAS SEPT CABEÇAS se apresenta como o desdobramento / expansão mítica do conflito espiritual e ideológico de O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO para a geopolítica do continente africano, CABEZAS CORTADAS  pode ser caracterizado como a implosão / desintegração onírica de TERRA EM TRANSE

C/ efeito, o filme se formula como um labirinto de alegorias, uma hipnótica procissão de arquétipos e mitologias abordando questões que vão do paradoxal destino dos caudilhos, sempre a oscilar entre as dimensões do trágico e do patético, aos meandros dialéticos da epopeia colonial ibérica nas Américas. E a maneira como Glauber constrói / entretece essas mandalas de signos é magistral. Cito aqui três passagens que me parecem particularmente brilhantes: 

- Uma espécie de contenda / bailado envolvendo dois caballeros medievais das guerras da Reconquista - um caracteristicamente trajado como lanceiro do Califado Almóada, outro envergando a armadura da cavalaria pesada do Reino de Castela - e o caudilho latino-americano no exílio; depois envolvendo duas figuras das classes populares agrárias - um yanacona inca e um camponês espanhol; e por fim incorporando o proletariado da Guerra Civil de 1936-39, ou seja, ou seja, a própria síntese dinâmica da Hispanidade in totum.

- O caudilho Diaz II, magnificamente interpretado por Francisco Rabal, mergulhado num lamaçal, confrontando-se caoticamente c/ os destroços míticos de seu passado, primeiro sozinho, mais tarde espojando-se c/ uma luciferina cigana, ícone das vertigens da carne, delírio bunueliano ressignificado como happening performático sob o inclemente sol catalão.  

- O mesmo Diaz perambulando às margens do Mediterrâneo, cemitério marinho de tantos impérios e quimeras, c/ um imenso relógio em suas mãos, como se quisesse reverter a inexorável marcha do Tempo, retomar a glória perdida, talvez até mesmo capturar a Eternidade, La persistencia de la memoria de Dali convertida em tableau vivant.

Em suma: se a possibilidade de uma zona crepuscular onde se entrechoquem / entrelacem cinema, história, geografia sagrada e metafísica lhes parece algo fascinante, CABEZAS CORTADAS é um filme absolutamente fundamental.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros 

Glauber Rocha no exílio I - Der Leone Has Sept Cabeças (1970)

 Alphonse van Worden - 1750 AD



Estimados confrades: 

Revi hoje pela manhã c/ o mesmo fascínio de sempre DER LEONE HAS SEPT CABEÇAS (1970), primeiro longa-metragem filmado por Glauber Rocha no exílio durante a década de 70 (no mesmo ano ele ainda rodaria CABEZAS CORTADAS na Espanha). 

E é sempre pertinente assinalar, antes de qualquer outra coisa, como genial cineasta baiano foi capaz de sintetizar exemplarmente as principais linhas de força conceituais e diretrizes estéticas de sua arte nos dois grandes manifestos que lançou respectivamente em 1965 e 1971: UMA ESTÉTICA DA FOME e EZTETYKA DO SONHO

C/ efeito, ainda que tipologias e classificações deste gênero inevitavelmente sejam um tanto quanto esquemáticas, podemos dizer que a primeira fase de sua carreira (até MARANHÃO 66) se desdobra sob o signo da Estética da Fome, ao passo que a partir de O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO (1969), sua filmografia passa a refletir c/ intensidade cada vez o programa esboçado na 'Eztetyka do Sonho'. Nesse sentido, TERRA EM TRANSE (1967)  pode ser encarado como um divisor de águas, tanto como o pyramidion do primeiro período quanto como a pedra fundamental do processo de transfiguração estético-alegórica de sua obra, que acabaria resultando em todo um projeto de refundação mística e mítica do agir político no seio da criação artística. 

Cito aqui, para poupar tempo e esforço, algumas passagens de um artigo que escrevi sobre o tema:   

"Com efeito, a obra de Glauber flui numa linha ascendente, tanto no plano estético e artístico quanto no sentido da evolução progressiva de um projeto a um só tempo ideológico, espiritual e existencial. A cada filme e texto são agregados novos elementos, novas perspectivas a este work in progress, que vai expandindo suas coordenadas, revestindo-se de aspectos cada vez mais multifacetados e complexos, até o seu surpreendente coroamento final com A IDADE DA TERRA (1980).  É, pois, fascinante observar como esse work in progress glauberiano vai se processando ao longo de sua trajetória. Em BARRAVENTO (1962) e DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (1964), seus primeiros longas-metragens, podemos observar um cinema ainda determinado por parâmetros narrativos e estéticos tradicionais, caudatário, sobretudo, do 'cinema dialético' do soviético de Sergei Eisenstein (1898-1948) e do neorrealismo italiano, não podendo também deixar de ser mencionada, especialmente no que concerne ao trabalho de direção dos atores, uma substancial influência da dramaturgia de Bertolt Brecht. (...) E se a princípio é patente o influxo dos modelos europeus de cinematografia e dramaturgia, Glauber se afasta paulatinamente de tais influências em direção a uma estética totalmente original, fusão de alegoria barroca, pajelança antropofágica e cristianismo libertário, num processo que acompanha o seu desligamento progressivo das categorias racionalistas da ortodoxia marxista em direção a um conceito de revolução messiânica, cujo veículo de transformação é precisamente o êxtase místico convertido em agir político. A partir da trinca de longas que dirigiu no exterior (CABEZAS CORTADAS - 1970; DER LEONE HAS SEPT CABEÇAS - 1970; CLARO - 1975) e, por fim, em A IDADE DA TERRA, obra que é muito mais uma experiência, um ensaio aberto, do que a estrutura fechada com ‘início-meio-fim’ que tradicionalmente entendemos como um 'filme', a dimensão ritualística da obra de Glauber, presente como embrião já nos primeiros curtas, atinge o seu ponto máximo de realização." 

Isto dito, gostaria ainda de fazer aqui mais três considerações adicionais, pontos que não observei no texto supracitado.

- É muito interessante notar como mesmo na fase messiânica, Glauber não abdica do recurso a modelos dramatúrgicos e referências estéticas 'ocidentais'; o que muda é o caráter mais decididamente 'vanguardista / experimental' dessas influências. Em DER LEONE, por exemplo, é a meu ver patente o emprego de elementos do happening e da performance característicos da vanguarda das artes cênicas dos anos 70; do Teatro Laboratório / Teatro Pobre de Grotowsky; do Teatro da Crueldade de Artaud e d'um modo geral de toda uma estética do absurdo; e talvez sobretudo do então recentíssimo cinema de agitprop experimental do Grupo Dziga Vertov.  

- Fazendo aqui uma espécie de análise da gramática formal do filme, rever DER LEONE proporciona ao espectador a oportunidade de mergulhar na intrincada intertextualidade existente entre as diferentes fases do opus glauberiano, uma complexa teia semiótica de retroalimentações e reflexos invertidos. Assim sendo, se CABEZAS CORTADAS pode sob certos aspectos ser caracterizado como a implosão / desconstrução onírica de TERRA EM TRANSE, DER LEONE se formula como o desdobramento / expansão mítica do conflito espiritual e ideológico de O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO para a geopolítica do continente africano. 

- O epíteto que costumo atribuir a Glauber - PROFETA - não é um qualificativo gratuito, aleatório. Num dado momento do filme, quando o governador da Colônia (Reinhard Kolldehoff), o atravessador português (Hugo Carvana) e o agente da CIA (Gabriele Tinti) estão interrogando o líder guerrilheiro estrangeiro (Giulio Brogi) recém-capturado, o agente americano, divagando sobre o futuro do planeta, diz mais ou menos o seguinte: 

"No futuro tudo será resultado da planificação total da técnica e da economia pelos cérebros eletrônicos, que pertencem a nós, os povos civilizados. Surgirá um novo modelo de organização social, superior ao capitalismo e ao comunismo, e também uma nova Humanidade."

É ou não é a perversa utopia de 10 entre 10 potentados nefários da N.W.O hoje, os Zuckerberg, Soros, Schwab, Page, Bezos, Musk e Gates da vida?

sexta-feira, março 18, 2022

Um clássico contemporâneo


Estimados irmãos d'armas y confrades: 

Não é sem certa dose de risco que se revisita na maturidade um livro dedicado pelo menos em princípio ao público infantojuvenil; especialmente, vale dizer, quando se está a falar d’uma obra que ocupa uma posição central no panorama de sua memória afetiva literária, uma obra que foi lida e relida com fervor e veneração justamente naqueles anos onde tudo parece se revestir das cores mais fatais e pungentes. 

E felizmente a aposta foi recompensada c/ todos os juros possíveis e concebíveis: Die Unendliche Geschichte (Michael Ende, publicado originalmente em 1979 na Alemanha Federal) exerceu sobre o calejado Alfredo de 2022 o mesmíssimo impacto que teve para o ansioso rapazinho que outrora fui em 1985. Aliás, exceção feita a alguns exageros de índole moralizante / pedagógica (todavia plenamente compreensíveis no contexto da trama), eu diria inclusive que hoje se apresenta como uma leitura até mais surpreendente, comovente e arrebatadora.  Pois em verdade vos digo, conforme já frisara à partida: c/ efeito, A História Sem Fim é tão somente em tese um livro escrito para jovens, pelo menos em se tratando da juventude atual. Claro está que o autor  tinha em mente a mocidade alemã dos anos 70 como ‘tipo ideal’ weberiano, e aí talvez fosse possível conceber um público-alvo entre 13 / 18 anos capaz de digerir  (ou no mínimo de não se perder inexoravelmente) um livro que definitivamente está bem longe de ser óbvio ou singelo. 

S/ fornecer quaisquer detalhes sobre o enredo, estamos falando d’uma obra que em numerosas passagens lança mão d’uma dicção densamente alegórica e poética; que abarca múltiplas camadas de símbolos e significados, envolvendo tópicos filosóficos como o Mito da Caverna e o Paradoxo da Regressão Infinita, aspectos da semiótica, da psicanálise e da linguística, bem como uma vasta plêiade de questões de âmbito esotérico: a Jornada do Herói, a Thelema crowleyana, a Theosis, as diversas fases da operação alquímica, a Árvore Sephirotica e a Árvore Qliphotica etc. E tudo isso emoldurado por uma imaginação exuberante, transbordante, capaz de gerar uma profusão inesgotável de cenários, episódios e sobretudo personagens verdadeiramente extraordinários e rigorosamente inolvidáveis.   

Em suma: se és devoto de obras como The Lord of the Rings ou Chronicles of Narnia, diria eu que perigas encontrar um novo favorito para o panteão.


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros 


quinta-feira, fevereiro 24, 2022

Apontamento a propósito da crise russo-ucraniana


Alphonse van Worden - 1750 AD




Diletos irmãos d'armas, savdações! 


Refletindo hoje sobre a crise internacional que ora se desenrola perante nossos olhos, diria eu que algumas conclusões se impõem à partida, em verdade premissas fundamentais para qualquer análise séria a propósito do tema. São elas: 


I - A questão deve ser lida e no fundo tão somente pode ser integralmente compreendida à luz do plurissecular conflito geopolítico, militar, ideológico e espiritual entre as civilizações de índole telurocrática, isto é, os 'Impérios Terrestres', e as civilizações de índole talassocrática, vale dizer, os 'Impérios Marítimos'. Ou seja: a oposição entre TERRA e MAR; ETERNIDADE e TEMPO; PERMANÊNCIA e MUDANÇA; ESTABILIDADE e INSTABILIDADE. Assim sendo, a Ucrânia é hoje tão somente um território em disputa, mais um entre tantos e tantos campos de batalha instrumentalizadas pelas facções em luta nesta milenar conflagração.


II - A União Europeia como princípio teórico, projeto existencial em seu sentido mais abrangente, qual seja, um Grande Espaço agregando todos os narods europeus sob um mesmo estandarte e destino manifesto comum, é uma iniciativa essencialmente nobre e necessária; e como tal foi acalentada e auspiciada pelo que houve e há de melhor entre pensadores e líderes políticos dos séculos XX e XXI.  A título de exemplo, poderíamos mencionar aqui figuras do porte d'um Carl Schmitt, d'um Arthur Moeller van den Bruck (de quem aliás comecei recentemente a ler com imenso interesse a obra Das Dritte Reich, precisamente um projeto de Grande Espaço Europeu) , d'um Oswald Mosley, d'um Francis Parker Yockey, d'um Alain de Benoist, d'um Alexandr Dugin, entre tantos outros. C/ efeito, trata-se d'um ideal que remonta ao século XVIII: em seu ensaio de teologia política Die Christenheit oder Europa (1799), Novalis advoga um retorno à Societas Christiana medieval, cuja unidade harmônica poderia regenerar uma Europa convulsionada por dissensões políticas e religiosas; seria, pois, o caminho para o reencantamento do mundo moderno, fragmentado e desprovido de um sentido maior.   


III - Destarte, c/ maior ou menor ênfase num resgate de tradições imperiais perdidas (Roma, Bizâncio, HRR etc.); inclinando-se para esta ou aquela forma de governo (monarquia, república); diferindo quanto a uma maior ou menor concessão de autonomias no seio do Grande Espaço, seja em âmbito administrativo, econômico, cultural, religioso etc., os autores supracitados sonharam c/ um Imperivm multinacional encarnando o plvriversvm europeu. E qual seria a grande e fundamental diferença, o verdadeiro e intransponível abismo que separa todos esses projetos da UE tal como esse organismo se constituiu e existe hoje? A resposta pode ser dada em duas palavras: a mais visceral e irreconciliável incompatibilidade em relação a qualquer modalidade de democracia liberal, com todos os múltiplos e multiformes pressupostos e implicações ideológicas, políticas, econômicas, culturais e espirituais que esse tenebroso binômio engendra. 


IV - O triunfo da TERRA sobre o MAR; do bloco eurasiano sobre o bloco atlântico; da IV Teoria Política (ou qualquer outro nome que se queira atribuir à articulação que se forja hodiernamente entre diferentes recortes teóricos, perspectivas político-ideológicas e modelos de organização de cunho antiliberal) sobre a nebulosa liberal: eis o que está em jogo.     


terça-feira, setembro 14, 2021

Crônicas do Novo Normal - I: a propósito do bichano y do imunizante




Esta nossa indigitada Terra de Santa Cruz é mesmo um país deveras... singular, em y por tudo sui generis.

Senão vejamos: estava hoje este vosso humílimo confrade, cidadão pacato y ordeiro que é, num posto de vacinação situado no outrora idílico y bucólico bairro do Jardim Botânico, sentado calmamente à espera de sua republicana y salvífica (oh glória... 🙄) dose de imunizante Pfizer, enquanto uma diligente y abnegada enfermeira preenchia o comprovante y preparava a ampola, quando um lépido y faceiro felino ex nihilo aboletou-se em meu colo.

Após recuperar-me do óbvio sobressalto suscitado pela inusitada ocorrência, notei que o ronronante y madraço bichano esfregava sua cabeça em meu regaço, nitidamente à espera de afagos, no que foi aliás prontamente atendido. A enfermeira, de nome Marli, então manifestou-se, sorridente: “uma gracinha, né?? É o Davi. Todo mundo aqui adora ele! E ele pelo visto gostou do senhor, nunca tinha visto fazer isso antes, pular no colo de um estranho!”. Ainda um tanto quanto perplexo, pude tão somente murmurar algumas palavras de constrangido assentimento, enquanto recebia minha cívica y científica vacina.

Moral da história: ao que tudo indica, eu não apenas não tinha o direito de expressar qualquer sentimento de inconformismo com o ocorrido (sem que se possa atribuir ‘responsabilidade’ alguma ao simpático y meigo animalzinho, claro está), vale dizer, a insólita y porventura um tanto quanto antisséptica presença de um gato zanzando por entre caixas de medicamentos, como deveria, antes pelo contrário, me sentir agraciado, dir-se-ia até mesmo abençoado, c/ o facto de ter sido o distinto alvo dos protestos da mais elevada estima y consideração de messire felis catus Davi...

MAS ENFEEEM...


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Ten. Giovanni Drogo

Forte Bastiani

Fronteira Norte / Deserto dos Tártaros 


sábado, maio 29, 2021

A propósito da Tradizione Ermetica


Alphonse van Worden - 1750 AD




Egrégios irmãos d'armas:

Certa feita defini como modelos paradigmáticos de excelência intelectual aqueles indivíduos que fossem capazes de articular exemplarmente as 6 virtudes que reputo como cardeais no exercício da atividade intelectual:


CRIATIVIDADE

RIGOR

OUSADIA

LUCIDEZ

CLAREZA

PROFUNDIDADE 


A excelência intelectual seria idealmente alcançada mediante a perfeita coordenação entre estas seis virtudes. Digo 'idealmente' por estar cada vez mais convencido da inexequibilidade prática desse paradigma, que no fundo existe tão somente como possibilidade teórica, 'estrela-guia' a servir de farol de orientação. Destarte, o que há são combinações parciais desses elementos. Inclusive, tenho cá para mim que um patamar realista de notável excelência intelectual já é obtido quando três dessas virtudes atingem máxima potência de realização. 

Pois bem: La Tradizione Ermetica: nei suoi simboli, nella sua dottrina e nella sua «Arte Regia» (1931), obra de lavra do filósofo italiano Giulio Cesare Andrea Evola, dito Julius Evola, é precisamente um desses casos. Nela o autor de "Gli uomini e le rovine" logra um amálgama particularmente feliz entre RIGOR, PROFUNDIDADE e CLAREZA, o que não deixa de ser sobremaneira surpreendente, tanto em virtude das asperezas notoriamente características do acervo de questões abordado no volume quanto no que tange às idiossincrasias de seu autor. Explico: se profundidade e rigor são qualidades que encontramos em praticamente toda a longa trajetória intelectual de Evola, quero crer que o mesmo juízo não pode ser feito quando se está a falar em clareza; muito pelo contrário, vale dizer: malgrado escreva maravilhosamente bem, malgrado o ínclito pensador peninsular é penosamente hermético (sem duplo sentido, se faz favor), o que também se deve, há que reconhecer, às dificuldades inerentes aos temas habitualmente tratados por ele. 

Mas enfim, não é o caso deste livro em particular, o que torna Evola digno de todos os encômios e louvores: converter as crípticas, labirínticas e polissêmicas sendas do simbolismo alquímico num itinerário relativamente compreensível e cristalino para leigos definitivamente NÃO é uma tarefa NADA fácil. Sobre o tema já li tomos de incontestes sumidades tais como Fulcanelli, Mircea Eliade, C. G. Jung, Titus Burckhardt, Serge Hutin etc. e posso afirmar com tranquilidade: nenhum deles ilumina o monólito negro da alquimia com a mesma amplitude que este precioso volume de Evola. Pela primeira vez estou a compreender de maneira visceral, íntima, uma verdade essencial que eu intuía apenas no plano teórico como mero conceito: a dimensão fundamentalmente ESPIRITUAL e METAFÍSICA da tradição hermética, a profunda correspondência existente entre os processos alquímicos e os processos espirituais, entre o 'exterior' e o 'interior', o 'visível' e o 'invisível', o 'material' e o 'imaterial', o 'imanente' e o 'transcendente', o 'natural' e o 'sobrenatural'. 

La Tradizione Ermetica é, em suma, uma leitura transformativa, no sentido mais recôndito e crucial desta palavra.